quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Eva - a primeira cientista

Lendo o livro Der Antichrist de Nietzsche me deparei com uma parte bastante curiosa, a parte XLVIII. O livro no geral é marcado por uma crítica de Nietzsche ao cristianismo, de todos os costumes cristãos e da construção da moral cristã (que para ele é decadente), Toda esssa crítica vem com seu característico sarcasmo. Mas a parte em questão é interessante porquê Nietzsche observa como o saber científico é, naturalmente, uma posição contrária ao dogmatismo judaico-cristão. E o mais interessante é que ele toma o próprio livro Gênesis da Bíblia como um ponto a ser analisado para mostrar que Deus teria criado indiretamente, seu próprio rival, o conhecimento (ciência).
Como sabemos havia no Jardim do Éden a famosa Árvore do conhecimento, porém Deus teria proibido que Adão e Eva, recém criados, comessem o fruto de tal árvore. Porém uma serpente teria induzido Eva a comer tal fruto (seria a serpente a própria consciência científica de Eva?). Arrisco dizer que Eva ja era cientista mesmo antes de comer o fruto. Ela era uma empirista, queria ''provar'', queria sentir, provar se realmente aqule fruto traria malefícios ou benefícios a si. A ordem de Deus não a inibiu, seu espírito empirista-científico falou mais alto (é claro com um pouco da ajuda da serpente) e foi lá e fez, experimentou, experienciou.
Nietzsche analisa que a criação de Eva foi um erro de Deus (é claro, está sendo irônico), pois ela que seria a responsável pela conhecimento humano. Vejamos um trecho da obra.

"Foi devido à mulher que o homem provou da árvore do conhecimento. — Que sucedeu? O velho Deus foi acometido por um pavor mortal. O próprio homem havia sido seu maior erro; criou para si um rival; a ciência torna os homens divinos — tudo se arruína para padres e deuses quando o homem torna-se científico! — Moral: a ciência é proibida per si; somente ela é proibida. A ciência é o primeiro dos pecados, o germe de todos os pecados, o pecado original.Toda a moral é apenas isto: “Tu não conhecerás” — o resto deduz-se disso. — O pavor de Deus, entretanto, não o impediu de ser astuto. Como se proteger contra a ciência? Por longo tempo esse foi o problema capital. Resposta: expulsando o homem do paraíso! A felicidade e a ociosidade evocam o pensar — e todos pensamentos são maus pensamentos! — O homem não deve pensar. — Então o “padre” inventa a angústia, a morte, os perigos mortais do parto, toda a espécie de misérias, a decrepitude e, acima de tudo, a enfermidade — nada senão armas para alimentar a guerra contra a ciência!" (Nietzsche - Der Antichrist)

Analisando por esse lado, através da visão de Nietzsche e da Bíblia, notamos que a responsável e símbolo da ciência teria sido Eva. Nada de empiristas ingleses! A inocente Eva seria a pioneira na prática científica (é claro, analisando a mitologia bíblica de criação que está no Gênesis). E não foi uma cientista egoísta, chamou Adão para tirar a ''prova'' também, mostrando como que se faz. É claro que teve de ser expulsa do paraíso, junto com Adão, depois da desobediência. A intenção desse mito parece bastante clara - não crie tua moral por si mesmo, tu precisas de [sacerdotes de] Deus para conduzí-lo (algo totalmente criticado por Nietzsche que dizia que o homem tem de esquecer os valores morais cristãos de decadência, de rebanho, como ele dizia, e criar outros).

Certamente ninguém tão cético como a Eva, que não acreditou em seu próprio criador...isto lhe custou caro (o conhecimento sempre custa caro), mas a tornou, simbolicamente e miticamente, a primeira cientista !






Imagem - Eva, de Albrecht Dürer (1471-1528)




domingo, 7 de outubro de 2012

Os "amigos do rei"



          Na política. é interessante notarmos o que envolve um candidato ao poder. Algumas vezes as pessoas esquecem que quando escolhem um candidato, ele carrega um determinado grupo de pessoas das quais ele irá incorporar para o exercício do poder, da administração do setor público. É inegável que ele dará a cadeira dos cargos de confiança à essas pessoas, que são próximas à ele e que apoiaram-no. Tanto no âmbito dos municípios quanto dos estados, geralmente, esse conjunto de "pessoas de confiança", são simplesmente pessoas que querem usufruir as benesses que os poderosos lhe propiciam, e para ganhar isto adulam e bajulam o detentor do poder. Algumas vezes os políticos agem de maneira nepotista e colocam seus parentes nesses cargos, cunhada, irmãos, tio, etc. Mas como isso é mal visto pela sociedade, aquele que tem bom senso evitará ao máximo essa atitude, e colocará os bajuladores  que não sejam parentes, apenas "amigos". Era comum também existir esse grupo na época das Monarquias Absolutas, os chamados "amigos do rei", que eram bajuladores natos, o que chamamos de puxa-saco hoje. É claro faziam isso pelas benesses, assim como fazem muitas pessoas ainda hoje.
         O problema desses bajuladores é que normalmente entram no serviço público sem prestar qualquer concurso, ou seja, não demonstram competência devida para assumir seu cargo. E  agem de forma tranquila, pois sempre irão bajular cada vez mais o "rei". Nos dias de hoje não é mais o rei a figura a ser bajulada por esses sanguessugas, hoje são os prefeitos, deputados, senadores e até mesmo o presidente da república, no caso de um sistema presidencialista. E geralmente eles se sentem bem quando rodeados de bajuladores, isso infla-lhes o ego.
       Diferentemente de alguns outros países, o Brasil é um território muito propício para a ocorrência desse grupo. A lei (estou com preguiça de procurar o artigo) diz que é permitido a atribuição de cargos de confiança a pessoas que exerçam a função nas Chefias, Assessorias e Diretorias. Certamente esses profissionais desses cargos são os puxa-sacos que seguirão aquele que lá os colocaram, por mais erros que cometa e por mais errado que esteja, pois não querem perder suas benesses - jamais estão pensando na benesse social, mas sim na sua própria. Outro problema é que essas pessoas, não contentes com a posição privilegiada que estão, ainda ferem a lei acumulando cargos, entre outras coisas.
             Então, quando for votar, cabe você analisar também essas pessoas que irão exercer importantes cargos dentro do setor público. Analise também os bajuladores do seu candidato, os ''amigos desse rei'' e compare se vale a pena repassar o poder a ele e a tais pessoas. Pois certamente o destino de importantes serviços estarão nas mãos deles, e o nosso dinheiro também.

Ave Maria Bach/Gounod - contribuição luterana



Dentre as principais divergências entre os pertencentes ao catolicismo e os pertencentes ao protestantismo está a questão da veneração à figura de Maria, a mãe de Jesus (alguns protestantes dizem que até mesmo não pode ser considerada 'mãe' de Jesus, porque sendo ele o próprio Deus enquanto Verbo, não poderia ter mãe). Porém não quero entrar ainda nessa polêmica. O que queria mostrar aqui é uma curiosidade no ramo da arte musical.
Uma das versões mais conhecidas da música ''Ave Maria'', tem muito da influência de um protestante luterano em sua melodia - simplesmente o luterano alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750), um dos maiores compositores clássicos da história, senão o maior. Não é à toa que esta versão é conhecida como a Ave Maria de Bach/Gounod. Mas porquê de Bach/Gounod?
Charles Gounod (1818-1893), francês, também foi um grande compositor, este sim católico. O que acontece é que Bach não compôs a melodia original para a oração da Ave Maria, que é cantada em latim. O que ocorreu é que Gounod, quase um século e meio depois,  reconstruiu a melodia de modo novo, em cima da obra original de Bach - que é o Preludio No. 1 em C maior do Livro I de O Cravo Bem Temperado - e colocou a oração cantada seguindo a melodia, sendo que o resultado ficou como a conhecemos:




Abaixo a versão "pura" de Bach, apenas um Prelúdio dentre muitos de sua obra O Cravo Bem Temperado, sem associação com tema algum:



Notou a semelhança? Pois é, a ''versão Gounod'' é a mesma harmonia com um pouco de modificação e a inclusão da Ave Maria em latim em canto...e assim nasceu a Ave Maria de Bach/Gounod. Agora que você católico ouvir essa música vai lembrar que ela tem influência indireta de um luterano ! (e não é qualquer um, diga-se de passagem). É interessante analisarmos curiosidades como essa, até porque, de um certo modo, nem que seja indiretamente e por um simples detalhe musical, aproxima luteranos e católicos.


Bem, como eu disse, esta é apenas uma das versões mais conhecidas da Ave Maria. Também existe a Ave Maria do austríaco Franz Schubert (1797-1828). E foi outro caso de adaptação da melodia à letra da oração oficial em latim. A melodia na verdade vem da obra de Schubert "Ellens dritter Gesang". Ele também não escreveu a melodia para a oração oficial. Mas pelo menos, se serve como consolo, Schubert sim, era de tradição católica. A melodia era base para a canção da personagem Ellen, que entoava uma oração à Maria, pedindo ajuda. Então foi muito mais fácil pensar em transformá-la em base para a oração oficial da Ave Maria em latim. Ficou assim:




Sem dúvida as duas versões são muito belas, tanto a de Schubert, quanto a de Bach/Gounod, e tem histórias que você certamente não tinha conhecimento. O fato de uma influência de um músico luterano em uma das versões é interessantíssima e parece até uma ironia do destino. Disse uma vez um filósofo que as idéias se dão muito melhor entre elas do que os homens. Com certeza, a arte musical se inclui nisso.

sábado, 6 de outubro de 2012

Estou farto de semideuses !



                      Não é difícil depararmos com algumas pessoas querendo a todo momento demonstrar superioridade e a maior perfectibilidade de caráter possível, principalmente através de seus discursos. Tais pessoas parecem que nunca cometeram um erro na vida sequer, devido à imagem que passam e querem passar. Ela está sempre tentando manter sua pose. Talvez, por tanto tentar passar uma boa imagem ela acabe se achando perfeita! Muitas vezes tal pessoa tende também a ser arrogante. Mas essa característica, a de tentar passar uma imagem de retidão aos outros é muito comum do homem em sociedade. Ele sabe que nesse mundo a aparência é, muitas vezes, mais valiosa que a essência.
Sobre isso nos fala o poeta Fernando Pessoa (sob o heterônimo Álvaro de Campos) em seu Poema em Linha Reta. O poeta diz que sente, em meio a todos esses, que somente ele é vil e ridículo. Mas é claro, Fernando Pessoa está sendo irônico, e de forma até mesmo cômica através do poema. Veja-o abaixo.

''Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalho e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.''


sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Tu és Pedro(a) ! - paranomásia de Jesus?

             

                  Reservo esta postagem para a discussão em torno de uma citação bíblica, famosa por ser usada pelos católicos como a legitimação da existência da Igreja e também como legitimação da santidade do líder dessa Igreja, que seria sucessor direto do, sem dúvidas, principal discípulo de Jesus....Pedro. Lembro que até minha mãe, uma católica sem muito conhecimento das escrituras e dos seus usos, utilizou esse trecho para esse fim. (acabei de perguntar a meu irmão, católico (bem praticante), e ele confirmou que esse trecho é usado sim, como justificação da Igreja - e dos Papas (Bispos de Roma), sucessores de Pedro.
                Como sou agnóstico pareço ter uma posição privilegiada porque não tenho motivos nem para defender nem para não defender a legitimidade, da sem dúvida, mais antiga instituição do mundo...a Igreja Romana. Só proponho aqui uma análise interpretativa desses versículos, que são sem dúvida, causa das mais variadas divergências entre católicos e evangélicos. Vamos aos versículos..

Então compreenderam que não dissera que se guardassem do fermento do pão, mas da doutrina dos fariseus.
E, chegando Jesus às partes de Cesaréia de Filipe, interrogou os seus discípulos, dizendo: Quem dizem os homens ser o Filho do homem?
E eles disseram: Uns, João o Batista; outros, Elias; e outros, Jeremias, ou um dos profetas.
Disse-lhes ele: E vós, quem dizeis que eu sou?
E Simão Pedro, respondendo, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.
E Jesus, respondendo, disse-lhe: Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas, porque to não revelou a carne e o sangue, mas meu Pai, que está nos céus.
Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela;
E eu te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus. 
Mateus 16:12-19 (retirado de - http://www.bibliaonline.com.br/acf/mt/16)

                      Primeiramente cabe-nos analisar por quê que o catolicismo utilizaria esse trecho a seu favor. Não é difícil deduzir. Esse é um diálogo no qual Jesus parece dar grandes créditos à Pedro, aquele o qual seria então, para os católicos, o primeiro papa, por poder legítimo concedido pelo próprio Jesus !
                      Depois da resposta dada por Pedro à Jesus, de que pra ele Jesus era o Cristo (que era o que Jesus queria ouvir) e não um simples profeta, vem a polemica citação - Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha igreja. A maior discussão em torno dessa passagem é - seria a 'pedra' sobre a qual seria edificada a igreja, o próprio Pedro ou sua FALA, que diz que Jesus é o Cristo? Qual seria a pedra-base da igreja de Jesus?
                    Bem, primeiramente não é à toa que tal passagem causa confusões. A palavra 'cefas' em aramaico (língua ''original'' dos textos bíblicos) designa tanto Pedro quanto pedra. Será então que Jesus estaria fazendo uma paranomásia (ou trocadilho) com as palavras? Tanto considerando a pedra como a revelação como o próprio Pedro parece-nos que Jesus usou uma figura de linguagem.
                   Consideremos primeiro a frase do seguinte modo (o modo defendido pelo catolicismo) -''Tu é Cefas e sobre esta cefas (ou seja você mesmo) edificarei minha igreja''. Nesse caso Jesus estaria tratando Pedro na 3ª pessoa, e não na 2ª, ou seja, a expressão ''esta cefas'' estaria se referindo ao próprio Pedro, sendo um joguete de linguagem. Será que se Jesus soubesse a confusão que seria de interpretações em cima disso não teria dito- utilizando a 2ª pessoa normalmente - Pedro, TU és a pedra  sobre a qual edificarei a minha igreja?
                 Porém, a revelação em si de Pedro parece ser mais fundamental para o cristianismo do que ele próprio, um ser mortal.  Penso que a certeza de que' Jesus é o Cristo filho do Deus Vivo' é muito mais fundamental para o Cristianismo do que Pedro em si. Como erigir uma igreja sem a premissa de que Jesus é o Cristo? Consideremos agora a segunda interpretação, a de que a cefas (pedra) é a Revelação de Pedro. Ficaria assim - Tu és Cefas,  e sobre essa cefas (você é pedra e o que disse também é, por ser fundamental), edificarei minha igreja. Será que Jesus nomeou Simão como Cefas sabendo que ele era o que mais fortemente carregaria a cefas (crença de que Jesus é o Cristo) dentro de si?
               
Não escrevo essas análises para encerrar nada, não gosto de encerrar assuntos e como um bom cético, desconfio facilmente de qualquer conclusão. Talvez eu saiba de mais coisas e transforme minha visão, que não é tão boa, confesso, sobre questões teológicas. Mas que essa análise sirva de reflexão...
           



Gott ist tot - Nietzsche


"Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! " é uma citação muito polêmica e muito comentada do filósofo alemão de fins do século XIX - Friedrich Nietzsche. Nem cabe aqui falar a importância desse pensador para a história da filosofia e, principalmente para a filosofia contemporânea. O pequeno trecho mostrado no começo vem de sua obra "A Gaia Ciência" de 1882. Gott is tot ! significa Deus está morto! na língua nativa de Nietzsche, o alemão.
Muitos adolescentes que estão adentrando ao pensamento filosófico e vão direto para o pensamento nietzschiano,  querem polemizar, mostrando seu ateísmo através dessa frase do filósofo. Porém uma coisa tem de ser explicada - esta frase não tem nenhuma relação com "ateísmo" , e não faz sentido usá-la para este fim, por incrível que pareça. Nietzsche ultrapassa a discussão em relação a existência ou não do divino. Nietzsche quer dizer realmente o que então? Fundamentalmente a fala tem dois caráteres -  a discussão em torno da recusa da metafísica platônica (que é a base do cristianismo, para ele) causada pelo avanço extremo da razão esclarecedora  e, consequentemente, a transformação da sociedade da sua concepção de Deus. 

As discussões em torno do "metafísico" não fariam sentido mais para a sociedade guiada pela razão. O filósofo Kant já havia demonstrado que ''as coisas em si'' (ou seja, as formas ideais, puras, metafísicas) eram incognoscíveis, só poderíamos apreender os 'fenômenos', isto é, as coisas que nos aparecem, que aparecem a nossos sentidos. Porém, Deus é um ser metafísico, então sua compreensão seria de difícil alcance para a razão. 
Pra que dar importância então a aquilo que não poderíamos conhecer ? Começavam os filósofos pós-Kant a abandonar o dualismo e a focar nos fenômenos. É o que a corrente Positivista, por exemplo, procurou fazer, com seu pensamento extremamente cientificista. 
Filosofias desse tipo pensavam que a discussão em torno da metafísica não tinha mais sentido sentido, sendo campo do abstrato e da especulação. 
Esse abandono em torno das discussões metafísicas seria então, de certa forma, a morte de Deus. Nietzsche via que essa recusa do  metafísico atingia o conceito de Deus.
Porém, como Nietzsche mostra, o lugar de Deus não poderia ficar vago. A razão não seria suficiente para ocupar esse lugar . Isso quer dizer que o homem não abandonaria a idéia do absoluto, a idéia de Deus por completo. A metafísica, o sentimento do Absoluto estaria inerente ao homem, e ele, hipócrita que é, acharia um meio de fazer com que Deus pudesse coexistir com a razão. Mas para Nietzsche isso não seria mais possível, e o processo da razão esclarecedora seria inexorável. A única coisa que é possível e resta agora são apenas réquiens para Deus, as Igrejas passam a ser somente um túmulo simbólico de Deus onde os homens prestariam sua missa réquiem. É errôneo então utilizarmos a expressão para mostrar que a religião enfraqueceria, pois é a concepção de Deus que se transforma. A religião continuaria, mas não seria mais a mesma.  Nietzsche chega a dizer - "Deus está morto: mas, considerando o estado em que se encontra a espécie humana, talvez ainda por um milénio existirão grutas em que se mostrará a sua sombra".
O forte consumismo característico da era pós-morte de Deus seria também um sintoma da sociedade, que quer preencher seu vazio.Um sintoma de seu niilismo. Antes, Deus era a finalidade da vida, e tudo girava-se em torno dele (como é característico na sociedade medieval). Porém, com o advento da razão esclarecedora, e depois, o advento da sociedade de consumo, Deus passou a ser somente o 'meio', o meio para ser realizado os fins, que seria a realização do Homem em sua vida, sua felicidade. Passar de fim para meio é também, de certa forma, a morte de Deus.

É claro que não é facil explicar, tampouco compreender. Mas espero que esta tentativa de explicação tenha esclarecido um pouco dessa célebre expressão de Nietzsche. Esse certamente é um filósofo que para se compreender é preciso um conhecimento prévio da história da filosofia. Que essa explicação sirva para novas buscas. (recomendo aqui, para maior compreensão de Nietzsche - o autor Oswaldo Giacóia Jr)

O Canto do Piaga - Gonçalves Dias

                Gostaria de analisar aqui um poema de Gonçalves Dias (1823-1864), conhecido representante do Romantismo, que buscava exaltar a nação através das suas origens. Dias buscou muito na figura do Índio brasileiro para  a construção de algumas de suas obras, heroicizando-o.
                É um poeta que admiro pela beleza rítmica de seus poemas, pelas rimas colocadas de modo belo em cada verso, pela musicalidade...O poema em questão chama-se "o Canto do Piaga", publicado em 1846 na obra "Primeiros Cantos". O poema chama a atenção pelo fato do Piaga (o pajé), ser atormentado por um fantasma Anhangá (espírito do mal), que faz predições do que viria a acontecer à tribo, depois da chegada do "homem branco" - tratado no poema como um monstro - que iria profanar toda sua cultura, os Manitôs (divindades) e Maracás (tipo de chocalho que os indios usavam nos ritos). É com beleza que o autor descreve o que de fato viria acontecer as tribos depois dos europeus. Vejamos...


I
Ó GUERREIROS da Taba sagrada,
Ó Guerreiros da Tribo Tupi,
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi.
Esta noite - era a lua já morta -
Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.
Abro os olhos, inquieto, medroso,
Manitôs! que prodígios que vil
Arde o pau de resina fumosa,
Não fui eu, não fui eu, que o acendi!
Eis rebenta a meus pés um fantasma,
Um fantasma d'imensa extensão;
Liso crânio repousa a meu lado,
Feia cobra se enrosca no chão.
O meu sangue gelou-se nas veias,
Todo inteiro - ossos, carnes - tremi,
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.
Era feio, medonho, tremendo,
Ó Guerreiros, o espectro que eu vi.
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi!
II
Por que dormes, Ó Piaga divino?
Começou-me a Visão a falar,
Por que dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar.
Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar;
Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?
Tu não viste dos bosques a coma
Sem aragem - vergar-se e gemer,
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer?
E tu dormes, ó Piaga divino!
E Anhangá te proíbe sonhar!
E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
E não podes augúrios cantar?!
Ouve o anúncio do horrendo fantasma,
Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitôs já fugiram da Taba!
Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá!
III
Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.
Traz embira dos cimos pendente
- Brenha espessa de vário cipó -
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; é so!
Negro monstro os sustenta por baixo,
Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando - lá vão.
Oh! quem foi das entranhas das águas,
O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja...
Esse monstro... - o que vem cá buscar?
Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!
Vem trazer-vos crueza, impiedade -
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar Manitôs, Maracás.
Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribu Tupi vai gemer;
Hão-de os velhos servirem de escravos
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser?
Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão.
Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugiram da Taba,
Ó desgraça! ó ruína!! ó Tupá!



              Com certeza o poema possui um tom trágico. o monstro (europeu) que viria arruinar as tribos é tratado como o mau. Há um maniqueísmo no poema. Dias, procurando valorizar o Índio, povos originários da nação,  coloca o Europeu como destruidor malvado e profanador. Realmente, quando vemos em história, os fatos que acompanham a colonização sul-americana vemos uma cultura impondo-se sobre outra, e também transformando a outra. Porém o historiador, diferente do 'às vezes trágico' poeta, sempre procura ter um lado mais imparcial possível, procurando não cometer injustiças em suas análises. Ele teme o anacronismo e qualquer tipo de etnocentrismo, que sua análise possa trazer.  É importante a questão ética do trabalho do historiador, que não pode sair fazendo julgamentos apressados sobre fatos num olhar em que o contexto é outro. Porém manter um equilíbrio imparcial é uma tarefa nada fácil. De fato, a maioria dos estudiosos preferem dar suas sentenças e opiniões sobre as coisas.
Seria um absurdo pois, não mostrar as catástrofes da história. Porém, fazer um maniqueísmo, "bom e mau", "vencidos e vencedores" talvez não seja suficiente e nem adequado, no campo da História. Compreendemos G.Dias que é um POETA, num contexto de resgate da cultura nativa, que se tornou-se necessária no contexto da época. E ele faz belamente través de seus poemas. E quem não concorda com ele quanto à barbárie cometida pelo europeu? Será que é cometer anacronismo afirmar isso? Isso ultrapassa o próprio poema....deixemos tais discussões para uma outra oportunidade.


                           Livro- Gonçalves Dias, Primeiros Cantos, Ed. Autêntica

Fabrício César de Aguiar também analisa este poema em- http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol21/TRvol21a.pdf